“No Ceará, o sujeito nasce na Fé.
Cresce na Esperança e morre na Caridade”.
Quintino Cunha
Uma das minhas manias que cultivo quando tenho que ir ao cemitério é meditar nas fotos dos falecidos com as datas de nascimentos e falecimentos esculpidas nas placas dos túmulos. Em visita do tradicional cemitério São João Batista, deparei-me com o deteriorado epitáfio do famoso poeta, escritor e advogado José Quintino da Cunha.
De imediato, o gatilho da memória me fez recordar a infância quando meu pai narrava para a família em tom de humor as anedotas e galhofas desse irreverente, carismático, espirituoso advogado criminalista nas defesas no tribunal do júri.
Pedi ao amigo Geilson Cajuí que é devoto das almas do cemitério que providenciasse a recuperação do jazigo sob minhas expensas e desse destaque para a frase no epitáfio que estava quase ilegível. Ele mesmo ditou antes de morrer: “O pai eterno, segundo refere a bíblia sagrada, tirou o mundo do nada e eu nada tirei do mundo”.
Nasceu na cidade de Itapajé em 1875 e faleceu em Fortaleza no ano 1943. Foi membro da Academia Cearense de Letras e deputado estadual. Escreveu várias obras, a mais famosa foi o livro Pelo Solimões (1907). Exerceu advocacia em Manaus onde ficou muito conhecido por suas vitórias no tribunal do júri.
Quintino é reconhecido como precursor do humor cearense. Logo cedo, aos 12 anos, emergiu esse senso espirituoso e moleque, quando o novo padre da cidade viu um menino brincando na rua e solicitou uma informação:
– Meu jovem, pode me dizer como chego no mercado?
– O senhor segue em frente três quadras, dobra à esquerda e logo avistará o mercado.
– Menino, vá no domingo de manhã na missa, que vou lhe ensinar o caminho do céu.
– O senhor nem sabe onde fica o mercado, como vai me ensinar o caminho do céu?
Meu pai me contou esses dois episódios que guardo na memória:
Certa feita em uma audiência, quando o advogado adversário disse:
– Doutor Quintino, eu estou montado na lei!
Quintino retrucou:
– Pois, saiba que é muito perigoso montar num animal que não conhece bem.
Certa vez chegou no seu escritório um cliente, e os dois começaram a discutir:
– Então, Doutor, se o cachorro do meu vizinho entra na minha casa e come dois quilos de carne que estavam sobre a pia, eu tenho direito de pedir indenização?
– Claro que sim, meu amigo!
– Então, o doutor me deve 20,00, pois o cachorro era o seu!
– Pois não…, mas, antes me dê 30, 00, pois a consulta custa C$50,00!
Papai, também, recitava um verso que o poeta fez quando se hospedou ainda adolescente na casa de amigos que não lhe serviram nada para comer.
No bilhete que deixou na mesa estava escrito assim: Adeus casinha da fome, jamais me verás tu.
Aqui criei ferrugem nos dentes, teia de aranha no cu.
Em outra ocasião, ele foi contratado para defender um réu em Natal. O promotor, na sua sustentação oral, citou três grandes juristas franceses que reforçavam a tese defendida pela acusação. Quintino, aproveitando a deixa, também invocou a falácia do apelo à autoridade e recheou a sua sustentação oral da seguinte forma:
– Caros jurados, como dizia o grande Filomeno Gomes: – a lei não deve ser flexível, e sim rígida, coesa, soberana e forte. O júri, impressionado com a grande erudição demonstrada pelo advogado, inocentou o acusado. Após a decisão do júri, o jovem promotor perguntou a Quintino: – nobre colega e bom mestre, por favor, me dê o nome do livro daquele grande jurista Filomeno Gomes que você citou, pois fiquei admirado com a força das palavras dele. Ao que Quintino respondeu: – Coisa nenhuma! Filomeno Gomes é um vendedor de cigarros lá da Praça do Ferreira no Ceará.
Um dia, ele visitava a cadeia, em companhia do então governador do Ceará, Benjamin Liberato Barroso (1914-1916), quando um detento lhe pediu socorro jurídico:
– Doutor, fui condenado a quatro anos de prisão porque deflorei uma donzela. Ainda tenho dois anos para cumprir, mas estou disposto a casar se me perdoarem o restante da pena.
Quintino olhou com piedade para o jovem rapaz e respondeu:
– Quer um conselho de amigo? Cumpra o resto da pena!
Conta-se que ele hospedou em sua casa por um tempo o bode Ioiô que ganhou mais fama quando obteve votos para ser vereador de Fortaleza em 1922, em ato de protesto da população e Quintino teria pedido voto para o bode.
Ele morreu pobre e as anedotas atribuídas a ele estão presentes na memória dos cearenses.