Por Paula Paiva Paulo, G1 SP, Franco da Rocha
Ir ao cinema, assistir televisão, ter perfis em redes sociais, namorar. Estas são algumas das coisas que Caleb Souza, Priscila Mendes, e A.A. – que prefere não se identificar – fizeram só depois dos 20 anos de idade, após saírem do Ministério Evangélico Comunidade Rhema, sediado em Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Eles contaram ao G1 a rotina de proibições e punições do local.
A igreja evangélica é uma filial da seita norte-americana “Word of Faith Fellowship” (Associação Palavra da Fé), que foi denunciada por usar brasileiros como escravos na Carolina do Norte, nos Estados Unidos. A história foi revelada pela agência de notícias Associated Press, que entrevistou mais de 30 ex-membros da congregação. Em nota, a igreja nega os abusos (leia a íntegra do posicionamento abaixo).
Em Franco da Rocha, a igreja mantém uma escola que vai da Educação Infantil ao Ensino Médio. Elas estão lado a lado, tanto fisicamente quanto na doutrina rígida imposta aos alunos e fiéis. Os imóveis ficam em uma rua que hospeda casas de alto padrão com muros altos, como a da pastora Solange Oliveira, que, junto com seu marido, Juarez, e os pastores Paulo e Alice Santos, comandam a Comunidade Rhema.
Um familiar de Solange e Juarez, que aceitou conversar com a reportagem sob condição de anonimato, disse que a aproximação com os pastores americanos – Jane e Sam Whaley – tornaram mais duras as regras da igreja paulista. Antes do encontro, no final da década de 1980, Solange e Juarez tinham apenas um centro de orações em no bairro Morro Grande, na Zona Sul de São Paulo.
“Com o tempo, a doutrina no Brasil foi se assemelhando com a dos americanos. E [os americanos]criaram um jogo psicológico muito forte. Se não fizer isso, vai para o inferno, senão vai para o céu”, disse o parente dos pastores. Segundo ele, as famílias brasileira e americana ficaram mais próximas em 2005. A partir daí, a filial brasileira endureceu.
Rotina na escola e punições
Caleb, Priscila e A.A. , hoje com 27, 24 e 21 anos, respectivamente, cursaram toda a vida escolar no Colégio Cristão Rhema, onde só os membros da igreja podem estudar. Pedreiro, o pai de Caleb viu na escola uma oportunidade do filho ter uma boa educação em uma escola particular, já que podia pagar a mensalidade com serviços de obra. “Ele achava que era uma coisa boa, com princípios cristãos”, disse Caleb.
Pela manhã, antes das aulas, por meia hora, havia uma reunião com todos os alunos da escola para determinar quem merecia ou não assistir às aulas naquele dia. O critério era religioso. “Eles vinham acusando, apontando o dedo, você está em pecado, não vai entrar na sala hoje”, contou Caleb.
Um dos motivos para “estar em pecado” é falar com uma pessoa do sexo oposto. “Se caiu um lápis no chão e entregasse na mão dela [de uma menina], já era motivo para gritos e punições só pelo fato de entregar na mão”, disse A.A.
Os gritos eram uma das formas de punição e também “método” de oração. “Eles gritavam literalmente na orelha da pessoa, aí vinha um grupo de pessoas, empurrava você para baixo e eles falavam que o demônio tem que sair para fora. Eles chacoalhavam a pessoa de tal forma que a pessoa vomitava, e eles falavam que era o demônio estava saindo”, contou Caleb. Durante uma dessas orações, Priscila diz ter se machucado. “Numa dessas bateram minha boca no chão e quebrei o dente da frente”, conta a jovem.
O material didático tem censuras. Imagens de índios ou pessoas sem camisas eram cobertas. Partes de textos também. O tema reprodução é censurado até mesmo no estudo da demografia brasileira. Nem a clássica imagem dos gêmeos Rômulo e Remo sendo amamentados por uma loba (mito da Fundação de Roma) passou pelo filtro da igreja.
“Desde pequenos eles ensinam a Bíblia antes do conteúdo disciplinar. Eles fazem uma lavagem na nossa cabeça e cada coisa que a gente pensa precisa ser dita para eles”, disse Priscila.
Para as meninas, é obrigado o uso de roupas longas cobrindo todo o corpo e maquiagem só é permitida no Ensino Médio.
Uma das punições para quem desobedecesse às regras era ficar de fora das salas de aula. “[a gente]Ficava numa salinha separada, de disciplina, isolado de todos. Muitos dormiam nessas salas. Eles só iam para levar comida e chamavam a gente de pecadores”. Além dos castigos, Caleb e A.A. também dizem ter levados tapas no rosto.
Proibições
Ler livros que não fossem da igreja, ouvir música que não fosse da igreja, assistir qualquer coisa que não fosse da Comunidade Rhema, era proibido. Ter perfis em redes sociais? Nem pensar. No cinema, os jovens foram pela primeira vez aos 20 anos, depois de abandonarem a congregação.
Para o santista Caleb, uma das partes mais difíceis era não poder assistir aos jogos do alvinegro. “Se eu passei na frente da televisão e assisti futebol, tinha que confessar. Eles queriam ter total domínio dos jovens, que era a parte mais fácil. A parte mais fraca era nós, adolescentes. E fora os adultos, que vira um fanatismo”.
Outra proibição era ir à praia com roupa de banho. Aos 21 anos, A.A. contou que nunca foi à praia de sunga. “Seria impuro aos olhos deles, e aos olhos de Deus. Então nem pensar ir com roupa de verão”. Também é proibido comemorar aniversários e datas festivas, como Natal e Ano Novo.
Relacionamentos
O namoro é proibido na Comunidade Rhema. O que é permitido é o chamado “relacionamento de amizade”, que tem que ser autorizado pelos pastores. Se um rapaz gostar de uma menina, ou vice-versa, tem que pedir autorização para ter o relacionamento de amizade.
Caso autorizado, o casal pode começar a conversar, mas sempre acompanhado de um supervisor, chamado na igreja de “atalaia”. “Não podia pegar na mão, não tinha beijo, nada disso”, disse A.A. O estopim para a sua saída da Rhema foi quando sua mãe foi proibida de ser a “atalaia” de seu relacionamento. “Se minha mãe que me criou não pode me ouvir tem alguma coisa muito errada”, questionou o jovem, à época com 20 anos.
Este também foi um momento difícil para Caleb. “A parte da minha adolescência foi a pior, da sétima série para frente foram os piores anos, devido a essa pressão. A gente não podia ter contato com as meninas”.
Para passar a ser permitido o contato físico, o casal precisa casar. Mesmo assim, o controle continua após o matrimônio. “Nada pode ser feito se eles não aprovarem, até para ter filhos precisa pedir permissão”, disse Priscila.
Viagem aos Estados Unidos
“Eu fui porque era o sonho de todo jovem ir”, disse A.A. Ele foi duas vezes para Carolina do Norte, e ficou em casa de “irmãos” da igreja. Nestas casas, teve que trabalhar. “Eles fazem um psicológico tão forte que você se sente na obrigação de trabalhar”.
Os trabalhos eram sempre manuais. “Era obrigado sim a limpar a casa inteira, fazer manutenção na casa. E era trabalho de pedreiro, coisa bem pesada mesmo”. Os líderes da igreja americana falavam que o trabalho era um “tratamento para o coração”. “Eles diziam que isso estava fazendo bem para você, você querendo ou não”, disse o jovem.
Vida fora da igreja
Caleb foi o que saiu há mais tempo da Comunidade Rhema, há sete anos. Hoje, trabalha como motorista de ônibus e tem um filho. Ele disse que vive a melhor fase da sua vida agora. “Esses dois últimos anos que estou me sentindo bem melhor, por isso dou minha cara para falar mesmo. Tem amigos meus que saíram agora, e tem o mesmo medo que tinha 7 anos atrás”.
Já Priscila, que saiu há 4 anos, é assistente administrativa, mas ainda não conseguiu reconstruir os laços perdidos. “Eles privam você de tudo. E, quando a gente sai da igreja, a gente não consegue conviver com as pessoas, não consegui fazer amizades. Até hoje eu não consigo ser livre totalmente e não tenho amigos”.
A.A. saiu da congregação há apenas 1 ano e 4 meses. Ele sofre desde pequeno de uma dermatite atópica – doença crônica que causa lesões na pele – e diz que o quadro foi agravado pelo seu estado emocional. Ele teve depressão no ano passado, e está em tratamento. O jovem disse que sua personalidade foi moldada ao longos dos anos e sofreu uma mudança “drástica”.
“O que eu realmente quero é voltar a essência do que eu sempre fui, porque acho que a única coisa que não pode ser tirada da gente é a nossa essência. Quero ter novas amizades, preciso de amigos. Conhecer novos lugares, perdi muito tempo sim com isso”.
Igreja nega abusos
Procurada pelo G1, a Comunidade Rhema informou que não iria conceder entrevistas e que a posição oficial é a do comunicado divulgado no último dia 27. Veja a íntegra da nota:
COMUNICADO AO PÚBLICO
Nós, os pastores do Ministério Evangélico Comunidade Rhema, estando chocados, consternados e entristecidos com os artigos recentemente publicados pela mídia, vimos esclarecer ao público que:
Conhecemos o ministério Word of Faith Fellowship na Carolina do Norte, EUA, há mais de trinta anos, bem como os seus pastores, com os quais temos fortes laços de amizade e por quem temos grande consideração. São pessoas idôneas, vivem o amor de Deus, mas são caluniadas ao tentarem ajudar pessoas.
Nós não toleramos e não permitimos nenhuma forma de abuso em nosso ministério. Os relatos publicados são porções de mentiras e fatos distorcidos.
Nenhuma pessoa que é abusada e escravizada, como querem fazer crer os comentários, continua a frequentar a mesma igreja por 20 anos. Ou, ainda, escolhe voltar 20 vezes ao lugar em que é supostamente abusada, como mencionado por uma jovem, entrando e saindo do país.
Queremos mais uma vez deixar registrado o nosso repúdio às declarações feitas por essas pessoas, que pretendem manchar a nossa reputação e o bom conceito de que gozamos em nossa região, perante diversas instituições com quem temos relações de colaboração e perante todos os nossos conhecidos e amigos.
Pastores
Juarez & Solange Oliveira e Paulo & Alice Santos
G1