“É preciso diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, até que num dado momento a tua fala seja a tua prática”. Foi a frase do educador Paulo Freire que guiou a escolha da artista plástica Anne Rammi, de 37 anos, em meados do ano passado. Ativista, militante pela educação e defensora da democracia e da igualdade, como se define, ela se pegou vivendo uma incoerência: seus filhos viviam na “bolha da escola particular”, onde não conviviam com qualquer diversidade, num ambiente completamente desigual ao da maioria das crianças brasileiras. “Como posso ter um discurso de somos todos iguais enquanto estou comprando o acesso dos meus filhos à educação?”, questionou-se. E o pagamento não era barato: cerca de 2.000 reais por cabeça.
Em meio a essa reflexão, a família matriculou Joaquim, 7 anos, e Tomás, de 5, na rede pública. E aguarda uma vaga desde setembro para a pequena Iolanda, de um ano. O mesmo fez a renomada chef Bel Coelho, 37 anos. Dona de um restaurante na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, ela matriculou o filho Francisco, de três anos, em uma escola municipal por acreditar que lá ele seria educado em um ambiente mais diverso e inclusivo, mais próximo da realidade do país. “Eu queria que meu filho tivesse uma exposição à sociedade diferente da que as escolas particulares promovem. Queria que ele convivesse com negros, brancos e com pessoas de distintas classes sociais”, explica ela, que se diz chocada ao lembrar que ao longo da sua vida escolar em tradicionais instituições privadas nunca teve um colega negro na sala.
Nos corredores da rede pública, essas famílias têm encontrado mais pais de classe média que tomaram a mesma decisão. Do final do ano passado para o início deste ano, 220.767 estudantes matriculados na rede estadual de São Paulo vieram da rede privada, um número 25,8% maior do que os que fizeram a mudança há cinco anos (175.404). Alguns saíram por pura ideologia. Outros, também pela dificuldade de, em plena crise econômica, pagar mensalidades que podem beirar os 5.000 reais, especialmente quando a escola aparece no topo das melhores do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Foi o que aconteceu com a empresária Gabriela Nakagawa, que no ano passado se viu obrigada a mudar radicalmente o estilo de vida da família. Em meio à maior recessão econômica das últimas décadas, a empresária teve que fechar as portas de uma consultoria de negócios que empregava mais de cem funcionários e rever as contas de casa. A mensalidade da instituição de ensino progressista de São Paulo, na zona sul da cidade, em que estudava o filho do filho Pedro, 15, era um dos gastos que mais pesava: 3.500 reais. Gabriela começou então a procurar opções de escolas mais baratas, que se adequassem a seu orçamento. “Foi quando percebi que muitas delas ensinam de forma desconectada com o mundo que vivemos. Por isso comecei a pensar na opção de uma escola pública, onde meu filho estaria mais em contato com a realidade”, explica.
Assim, Pedro saiu da Escola Móbile e foi para o colégio estadual Aristides Castro. A decisão de o foi bem aceita pelo garoto, mas causou estranhamento em algumas amigas da empresária, principalmente mães de alunos de escolas particulares. “Muita gente ficou com medo da questão da violência e das drogas, mas isso é um preconceito, já que essas questões também estão inseridas nos colégios particulares”. Ela ressalta que a escola em que o filho estuda fica localizada em um bairro nobre da cidade, o que a tranquiliza em relação às questões de segurança. Ressalta, no entanto, que acredita que se ele estudasse em um colégio estadual da periferia, a segurança poderia ser um problema.
Outras pessoas também a questionaram sobre a qualidade de ensino das instituições públicas. Após seis meses, entretanto, Gabriela está contente com a escolha, mas admite que tanto ela como o filho precisam lidar com uma estrutura escolar muito diferente da que estavam acostumados. “A turma tem um nivelamento muito heterogêneo, há uma discrepância entre os alunos, alguns têm um desempenho bem fraco. Existe uma deficiência grande em termos de leitura. Até agora, a escola não pediu a leitura de nenhum livro. Se fosse no colégio anterior, o Pedro já teria obrigatoriamente lido uns cinco livros”, conta a empresária que se surpreendeu negativamente com o tamanho da biblioteca da escola. Além disso, outros pais também relatam problemas com os banheiros que, em muitos casos, estão mal cuidados sem o assento das privadas e papel higiênico. Pedro está indo muito bem na escola e os professores o escolheram como monitor de sala nas aulas de matemática, português e inglês. Com isso, ele ajuda outros colegas com mais dificuldades nas matérias.
Preconceito
Luciano Mendes de Faria Filho, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil, acredita que há um estigma de má qualidade que acompanha a rede pública há décadas e que essa imagem não reflete, necessariamente, a realidade. “Quando a imprensa falava de escola pública na década passada, falava de violência”, afirma ele, que ressalta que a rede melhorou significativamente nas últimas duas décadas, com melhor qualidade no material didático e na formação média dos professores. “A grande questão não é a qualidade da escola pública, mas a desigualdade social. É a origem social dos alunos da rede pública que faz a diferença no aprendizado. Não é a escola privada que é melhor, mas o fato de que ela trabalha com os 10% mais ricos, com famílias escolarizadas há gerações”, ressalta o professor.
Não é a escola privada que é melhor, mas o fato que ela trabalha com os 10% mais ricos, com famílias escolarizadas há gerações
Luciano Mendes de Faria Filho, professor da UFMG e coordenador do projeto Pensar a Educação, Pensar o Brasil,
“Boa parte dos alunos da rede pública que hoje estão no ensino médio, não tiveram pais que frequentaram essa etapa do ensino e fica mais difícil para eles discutirem e negociarem com os professores. Por isso é fundamental que as camadas médias estejam na rede pública. Estes pais estão escolarizados há mais tempo, dominam o discurso da escola e podem interagir com mais qualidade com os próprios professores e exigir mais”, diz o especialista.
Maior participação
A escolha da classe média pela rede pública, ainda que não seja representada por números massivos nos Censos Escolar, geralmente vem acompanhada de um impulso por uma maior participação. A chef Bel Coelho, por exemplo, passou a acompanhar o que Francisco comia na hora do almoço e resolveu dar algumas sugestões para melhorar o cardápio da merenda. “Dei aula de culinária às merendeiras utilizando os produtos que elas já costumam usar e acrescentei peixe também. A sugestão de peixe já era da própria prefeitura, mas consegui voltar nesta escola com a prática de servi-lo pelo menos uma vez por semana”, conta. Ela também chegou a doar papel higiênico e material escolar para a instituição. “Não tem como melhorar o sistema público se a gente não usar. A militância também precisa ser um papel da classe média”, diz.
A jornalista e empreendedora social Cintia Rodrigues, de 36 anos, decidiu, mesmo antes de engravidar, que matricularia os futuros filhos na rede pública. Em sua trajetória como repórter, cobriu por muitos anos a área e via essa melhoria citada pelo professor da UFMG acontecendo. “Os espaços de muitas escolas infantis públicas são enormes, com pátios com árvores, parquinhos. E isso tem muito a ver com a concepção pedagógica na qual acredito: nessa idade, pra mim, é mais importante para a criança correr, ter movimento, brincar. E nas particulares é muito comum a alfabetização precoce, com aulas de inglês desde cedo”, explica. Os gêmeos Heitor e Léo, de quatro anos, já passaram por três escolas municipais e, em todas, Cintia se envolveu no dia a dia da escola, fazendo parte do conselho escolar, formado por professores e pais, em paridade. Também criou um projeto, o Quero na Escola!, que une voluntários a pedidos de estudantes da rede pública, como palestras sobre racismo e feminismo e aulas de física quântica.
A opção de migrar para a escola pública também pode partir de um pedido dos próprios alunos. Após anos estudando em uma mesma escola particular, Helena Monteleone, de 15 anos, sentiu a necessidade de vivenciar um novo ambiente escolar. “Ela queria um colégio grande, com pessoas diferentes. Quando houve o movimento de ocupação dos secundaristas, ela chegou a visitar uma escola que estava ocupada. Acho que a semente da mudança aconteceu nessa época”, conta a mãe de Helena, a historiadora Joana Monteleone. As duas conversaram bastante sobre o tema até chegar à conclusão que um colégio estadual seria a melhor opção. Sem o peso da mensalidade, a mãe vai investir o dinheiro em um intercâmbio que Helena fará no próximo ano para a Inglaterra. “Claro que tive que me despir de mil preconceitos e rever meus pensamentos sobre escola e sobre aprender. Mas me surpreendi positivamente com o material didático. Era muito melhor do que ela estava acostumada e os professores parecem mais empenhados”, explica. Na visão da historiadora, a relação com o próprio corpo docente é diferente, já que o professor não é visto como um funcionário do aluno ou dos pais. Helena saiu do colégio particular São Domingos e foi para a escola estadual Zuleika de Barros Martins Ferreira, ambos na zona oeste da capital.
Ainda que a escola pública esteja longe de um padrão de qualidade exemplar e que a realidade enfrentada pela classe média na rede pública seja bastante distinta da dos alunos de periferia, na visão do professor da UFMG a diversidade nas escolas é fundamental. “É um cenário em que ambos ganham, pois se retira o aluno de classe média de uma socialização de shopping, de um gueto em que ele só convive com seu umbigo, com seu próximo. O Brasil é um país muito diverso. É fundamental que a gente possa fazer um país em que cada vez menos a diversidade se desdobre em desigualdade”.
EL PAÍS