Com sóbrio conjunto de blazer azul marinho e camisa, Marcelo Odebrecht aponta sua metralhadora para a mais alta cúpula política do Brasil. Nos vídeos de sua colaboração com a Justiça, liberados nesta quarta pelo Supremo Tribunal Federal, um dos homens mais ricos do Brasil, preso há mais de um ano, descreve cenas explícitas de corrupção que fazem jus ao apelido que as delações da Odebrecht ganharam na Operação Lava Jato: as do “fim do mundo”, ao menos aquele no qual vive o establishment político. Marcelo, seu pai, Emílio, e outros executivos da empresa constroem sua narrativa para a Justiça dizendo que todos – Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Aécio Neves, só para ficar nos presidentes desde 2003 e no mais recente candidato da oposição ao posto – e seus respectivos partidos eram ao menos beneficiários e muitas vezes partícipes de um azeitado esquema de oferta de dinheiro para campanhas, contabilizado e não contabilizado, em troca de apoio geral e favores específicos para aprovar legislações de interesse do grupo empresarial, um dos maiores na América Latina até a explosão do escândalo.
Com os vídeos, agora ganham forma, imagem e áudio, os conteúdos de vários vazamentos à imprensa. Em suas delações, a Odebrecht detalha à Justiça um esquema que diz ser antigo, em vigor pelo menos desde os anos 80, e pluripartidário, que coloca em xeque não só o bilionário financiamento de campanha brasileiro como boa parte dos orçamentos de obras públicas e outros negócios _os braços da Odebrecht vão da construção à petroquímica. Os relatos detalham modelo de negócios da holding que já embutia uma espécie de “custo político” em dinheiro para obter lucro no Brasil e fora do Brasil. “A única condição que existia é que cada executivo [presidente de cada unidade do grupo]deveria ter um centro que gerasse resultado e não levasse prejuízo”, diz Benedicto Barbosa da Silva, ex-presidente da empreiteira, ao explicar o critério para distribuir recursos a políticos. Barbosa era o responsável por centralizar os pagamento desses montantes não declarados à Justiça Eleitoral, para o qual a Odebrecht desenvolveu inclusive um software específico, chamado Drousys.
Os políticos negam as versões dos principais executivos da empresa e entre as acusações e a condenação jurídica o caminho é bastante longo. Mas, por ora, os vencedores da batalha midiática, capaz de velozes condenações políticas, são os procuradores da Lava Jato, em Curitiba e Brasília, e a própria empresa, interessada em obter as vantagens legais do acordo de colaboração com a Justiça e em se legitimar ante a opinião pública por contribuir para a investigação _uma breve visita à página do grupo na Internet mostra que o efeito das delações é positivo para sua imagem. Protagonista e sobrevivente de escândalos no passado, como o dos Anões do Orçamento, de desvio de verbas públicas, em 1992, agora a empresa diz estar disposta a mudar de lado e até mesmo “incomodada” com a surpresa na imprensa por causa do novo escândalo. “O que me surpreende é quando eu vejo todos esses poderes, a imprensa, [olhando]como se isso fosse uma surpresa. Me incomoda isso. Não exime em nada a nossa responsabilidade. 30 anos é difícil as coisas não passarem a ser normais.”
O “saldo amigo” de Lula e Aécio
É inegável a força das imagens de Marcelo Odebrecht dizendo que “todo lugar [em que]a gente tinha uma presença forte teve caixa 2”. “Eu, mesmo sem saber qual o montante exato, [nos Estados de]Minas Gerais, Rio de Janeiro ou São Paulo, eu sei que havia”, diz o empreiteiro. Ele diz ainda que mesmo doações legais poderiam ter sido fruto de atos ilícitos, a depender da contrapartida negociada para a contribuição de campanha. “Eu não conheço nenhum político do Brasil que tenha feito eleição sem caixa 2, não conheço nenhum político eleito que não tenha recebido: esse crime eleitoral todo mundo praticou. Ninguém mais tratava isso como crime.”
Tanto em seu acordo de delação com o Supremo como na ação a que já responde na Lava Jato em Curitiba, ambos depoimentos liberados ao público, Marcelo é didático ao contar como se relacionava com principais líderes políticos. Há extensos trechos sobre sua relação, indireta ou direta, com Luiz Inácio Lula da Silva, réu em cinco processos, três deles na Lava Jato, e com o PT. O ex-presidente da empresa diz que toda a contabilidade de campanha e o dinheiro repassado a Lula era negociado com o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, preso no Paraná desde o ano passado e também réu na operação.
O empresário diz ter disponibilizado um montante para uso do PT e ainda um “saldo” batizado de “saldo amigo” para uso específico de Lula. “Separamos 40 milhões para o ‘saldo amigo’, para atender a demandas que viriam do Lula. Quando Palocci pedia para descontar do saldo amigo, eu sabia que ele estava se referindo a Lula”, disse. Em duas oportunidades, uma delas na tentativa de comprar um terreno para o Instituto Lula, o empresário disse ter certeza “de que Lula tinha conhecimento dessa provisão”. O ex-presidente nega todas as acusações.
Marcelo Odebrecht também descreve como negociou com o também ex-ministro da Fazenda Guido Mantega a aprovação de uma medida provisória que aliviaria a cobrança de impostos para a Braskem, o braço petroquímico da empresa. “Em determinado momento da negociação acabou gerando uma MP. Em algum momento dessa negociação, eu estava numa reunião com Guido, ele escreveu num papel um valor de 50 e disse que tinha uma expectativa desse valor para a campanha presidencial de 2010. Ele não chegou pra mim e falou ‘olha, eu vou fazer isso”, conta o empresário. Assim, segundo ele, ficava claro que a obtenção da lei favorável dependia da contribuição para a campanha, para um caixa paralelo.
No longo depoimento, o empresário diz ainda que Dilma Rousseff e a ex-presidenta da Petrobras, Graça Foster, sabiam do esquema de propina em curso na estatal _algo que a ex-mandatária sempre negou_ e também fala da próxima relação com seu adversário político, o tucano Aécio Neves. Foi para o PSDB, o partido do mineiro, que ele diz ter repassado 50 milhões de reais, que não soube precisar se pela via legal ou por caixa 2. Como com o PT, o esquema também era intermediado com base no poder decisório dos políticos sobre setores e empresas, incluindo as estatais. “No início do Governo Lula, o PSDB, não apenas o Aécio, tinham uma forte influência no setor elétrico. Furnas [Furnas Centrais Elétricas S.A] continuava sobre controle deles”, afirma o empreiteiro.
Marcelo e Emílio Odebrecht e Benedicto Barbosa são apenas uma pequena parte das delações. O desfile do esquema que o patriarca da empresa descreve como “institucional” está apenas começando.
EL PAÍS